Por alturas dos anos 40 do século XX veio a constituir-se uma nova romaria em Real.
A família Magalhães, da Casa da Benfica, depois de ter tido uma participação avultada na construção da igreja nova de Real que, por isso, adoptou como patrono S. Raimundo, em homenagem ao progenitor dos seus patrocinadores - Raimundo Pereira de Magalhães - resolveu contribuir também para que se fizesse, nesta freguesia, uma romaria que imortalizasse o nome do patrono da igreja. E assim se criou uma nova tradição popular, paralela à de S. Brás, mas aqui com uma particularidade muito importante: na noite que antecedia o dia da festa da comunhão solene, que se realizava no último domingo de Agosto e se juntava com a Romaria de S. Raimundo, havia lugar a uma noitada que ganhou fama nas redondezas e arrastava romeiros não só das várias freguesias vizinhas, mas também de algumas mais distantes.
O povo atraído pelos carroceis, as barracas de tiro, o café de assobio e todas as demais guloseimas, acorria em massa também para apreciar os despiques entre as Bandas de Música de Freamunde e de Revelhe de Fafe que, durante a noite, davam vários concertos para gáudio dos amantes desses "conjuntos" da época, que também iam sendo presenteados com sessões de fogo-de-artifício, lançado de palanque apropriado, quase sempre erguido no monte em frente do cemitério, mais precisamente no local onde, em data ainda recente, veio a ser construída a nova escola primária de Real.
E já que se falou em música, não poderíamos deixar no esquecimento uma ocorrência passada com um músico de uma das bandas convidadas em determinado ano. O encargo de retribuição do trabalho da banda incluía o almoço para todos os músicos. Estávamos na década de 40 e a fartura era coisa que não se sentava à mesa dos mais necessitados. E grande parte dos músicos pertencia a este estrato social. A casa que assumiu o compromisso de fazer "o tacho" não aparou as unhas muito rentes, fornecendo boa comida e em quantidade. Um dos músicos, depois de se ter regalado com o manjar, pôs-se a chorar. Receando tratar-se de algum desgosto particular, os colegas aproximaram-se dele e inquiriram:
- Então rapaz... que é que se passa? A resposta demorou, mas lá saiu...
- Tanta comidinha para aí e tão boa e eu já não posso comer mais.
E claro que se compreende a ânsia que vazava aquela alma.
Todo o adro e parque da igreja eram ocupados pelo arraial e todos os arruamentos, do parque circundante, eram engalanados com autênticos corriões de lâmpadas que permitiam a circulação de toda a romaria, num ambiente de farra e alegria, enquanto outros iam aproveitando para pagar as suas promessas, já que a igreja se Igreja Matriz de Real mantinha aberta com essa intenção, que o Padre Abel não era homem a quem aborrecesse a entrada de dinheiro nos cofres do "santíssimo".
A temperatura amena permitia aos forasteiros dormir ao relento, encostados às muitas árvores que se erguiam no parque. E, para não variar, formavam-se vários grupos que iam dançando quer ao toque de uma viola, uma harmónica ou uma concertina.
O próprio "Comércio do Porto" chegou a referir-se elogiosamente a esta romaria que se fez vários anos sem interrupção.
Mas veio a desvalorização do "Cruzeiro", divisa que, trocada por dólares, sustentava a comparticipação brasileira na romaria de S. Raimundo e esta foi caindo até "bater no fundo".
Foram passados cerca de 10 ou 15 anos e a romaria ressurgiu e parecia que, agora, para ficar. Mas ultimamente tem sofrido alguns ataques de forasteiros que não sentem esta terra e associaram-na a outra divindade que, só por si, não produz entusiasmo que justifique dedicar-lhe uma festa, ofuscando assim a tradicional romaria e dando um exemplo de mau pedinte que, logo que vê o dador pelas costas, se recria a fazer figas e a deitar a língua de fora como em sinal de escárnio. Quem diria que até nas relações religiosas há santidades que andam à boleia de outras.
Torcato Bessa
In: Jornal de VILA MEÃ - nº. 37 – Julho de 2002 - pág. 9.