Vila Meã, uma terra com história...

Largo Zé do Telhado

LARGO ZÉ DO TELHADO

(c) António José Queiroz

 

O Largo Zé do Telhado situa-se na freguesia de Ataíde, enquadrado pelas Ruas da Igreja, da Bela Vista e da Calçada. É um dos espaços mais interessantes de Vila Meã sobretudo após as obras de requalificação a que foi sujeito (inauguradas a 27 de Agosto de 1994). É de lamentar, porém, que não tenha havido então (tal como agora) coragem para o transformar, de facto, num jardim, retirando-lhe o estacionamento de automóveis da sua primeira plataforma. Lamenta-se igualmente o estado de abandono (e até de ruína) de algumas das casas aí existentes. Tal como noutras zonas de Vila Meã (Estação e Rua Dr. Joaquim da Silva Cunha, por exemplo), é um triste “postal ilustrado” que se mostra a quem nos visita.

Durante anos designou-se oficialmente, com toda a justiça, Largo Bruno José Taveira, homenageando um dinâmico empresário do ramo metalúrgico. Este prestigiado cidadão vilameanense foi presidente da Assembleia-Geral do primeiro clube de futebol da nossa terra, o Santa Cruz Sport Club, e integrou a “Comissão de Cavalheiros” aqui constituída para festejar a inauguração da Luz Eléctrica em Vila Meã (18 de Março de 1928).

Bruno José Taveira nasceu em Ataíde, a 3 de Setembro de 1871, e nesta freguesia veio a falecer, no dia 16 de Julho de 1935. Era filho de Lúcio José Taveira e Maria Marinho; neto paterno de Francisco Albino e Maria da Conceição (de Ataíde); neto materno de Manuel Marinho da Mota e Luísa Alves (de Fervença, Celorico de Basto).

A célebre Fundição de que foi proprietário, e que funcionou durante dezenas de anos na Rua 5 de Outubro (no local onde se situa o prédio que alberga a GNR), foi uma verdadeira escola profissional onde se formaram várias gerações de excelentes metalúrgicos. Embora desactivada nos inícios dos anos 70 do século XX, ainda hoje a sua influência se faz sentir, já que os seus últimos trabalhadores foram mestres de alguns metalúrgicos ainda em actividade.

A exemplo do que sucedeu noutros largos e artérias, também neste espaço de Ataíde houve mudança de nome. Pouco consensual, diga-se. Não que tenham sido colocadas reservas ao nome de Zé do Telhado na toponímia vilameanense. Simplesmente este nome podia e devia ter sido dado a outro espaço, evitando assim substituir a placa com o nome honrado de Bruno José Taveira.

O Largo Zé do Telhado recorda o célebre e mítico chefe de um bando de salteadores. Chamava-se José Teixeira da Silva (ou mais simplesmente José Teixeira, como consta da sua certidão de casamento). Nasceu a 22 de Junho de 1818, no lugar do Telhado, freguesia de Castelões de Recesinhos, do então concelho de Santa Cruz de Riba-Tâmega (cuja sede foi em Vila Meã até è sua extinção em 24 de Outubro de 1855). Era filho de Joaquim de Matos (também conhecido por Joaquim Teixeira) e Maria Lentina (ou Maria Leontina); neto paterno de Francisco de Matos e de Maria da Silva (de Castelões); neto materno de Manoel Luís e Maria Lentina (de Caíde de Rei).

Aos 14 anos foi aprender a arte de castrador de animais com seu tio José Diogo, que vivia em Caíde de Rei. E foi nesta freguesia que viria a casar com sua prima Ana Leontina de Campos, filha do dito José Diogo e de Ana Leontina de Campos, no dia 3 de Fevereiro de 1845. Deste casamento houve pelo menos quatro filhos: Maria Josefa (1845), Teresa (1847), Ana (1849) e António (1852).

Bem antes do casamento assentara praça em Lisboa, no Regimento de Lanceiros da Rainha (actualmente Lanceiros 2). Em 1837, durante a chamada revolta dos Marechais, distinguiu-se em combate (Chão da Feira e Ruivães) integrado nas tropas fiéis ao marechal Saldanha. Nove anos mais tarde, durante a guerra civil (Patuleia), esteve ao lado dos setembristas contra os cabralistas, tendo sido ordenança de Sá da Bandeira, a quem salvou a vida numa batalha, em Valpaços. Num gesto de agradecimento, esse famoso militar terá tirado do peito o colar da Torre e Espada, colocando-o no peito de José do Telhado.

Fisicamente era um homem alto e forte, de olhos e cabelos castanhos. Usava quase sempre uma barba cerrada que descaía em leque, que lhe dava um ar distinto e impunha respeito. Nada fazia prever, pois, que o seu destino viesse a ser o de chefe de salteadores. Foi, porém, isso o que sucedeu, já que a sua vida andou para trás (como costuma dizer-se) após os turbulentos episódios da Patuleia em que teve activa participação.

Com dívidas cada vez maiores e sem trabalho que garantisse o sustento da família, tentou a sorte no Brasil onde esteve efemeramente, regressando ainda mais pobre do que quando partira. Falhada a experiência de emigrante, bem como a “via legal” de sobrevivência em terras lusitanas, sobrava a “outra”, isto é, a do crime, vida que viveu intensamente durante cerca de oito anos, comandando duas quadrilhas a que impôs uma rígida estrutura militar, com um forte sentido da hierarquia: a do Marco, de que faziam parte, para além de um ajudante (o seu irmão Joaquim), quatro chefes de divisão e 20 divisionários, e a de Lousada, com novo ajudante, cinco chefes de divisão (entre os quais seu irmão, um padre e um fidalgo) e 25 divisionários. A todos estes elementos juntavam-se ainda outros, em número indeterminado, o chamado corpo auxiliar (homens e mulheres do povo, que eram uma espécie de olhos e ouvidos da quadrilha em algumas terras desta região).

Robin Hood português, assim tem sido chamado Zé do Telhado, não só pela sua valentia mas sobretudo pela sua generosidade para com os mais pobres, com quem fazia questão de repartir o saque dos assaltos. Eram, pois, fundadas as razões que o levavam por vezes a apresentar-se como “Repartidor Público”.

Dos assaltos associados ao seu nome (Casa de Cadeade, em Santa Marinha do Zêzere - Baião, Casa de Carrapatelo, em Penha Longa - Marco de Canaveses, Casa de Domingos Camelo, em Fervença - Celorico de Basto, Casa de Senra, em Aião - Felgueiras, e à Casa do Padre Albino Pacheco da França, em Unhão - Felgueiras) os factos são conhecidos e sobre eles já muito se escreveu (vejam-se, por exemplo, os livros da autoria de José Manuel de Castro Pinto).

De todos eles, o que permanece ainda no imaginário popular é o que teve lugar em 8 de Janeiro de 1852, na Casa de Carrapatelo, cinco dias após o falecimento do seu proprietário, José Joaquim de Abreu e Lemos, sargento-mor das milícias de Bemviver. Esse assalto ficaria marcado pela morte de um criado, de nome João Carvalho (assassinado por João Ribeiro Peneireiro) e pela sova que Zé do Telhado deu a outro membro do bando, o facinoroso José Pinto, um vendeiro da Lixa conhecido ironicamente por José Pequeno (ele que era um homem de estatura avantajada), que tentou abraçar a jovem D. Ana Amélia, neta do fidalgo falecido. Este seu gesto calou fundo em D. Ana Vitória, a herdeira do solar, viúva e mãe de D. Ana Amélia, que, embora roubada nos seus haveres, nunca deixou de mostrar a sua gratidão (e até uma inusitada e misteriosa simpatia) por Zé do Telhado, como se viu antes e durante o julgamento a que este viria a ser sujeito anos mais tarde.

Quem não lhe perdoou a sova e a humilhação foi José Pequeno, que passou a odiá-lo profundamente, não tardando a delatar as actividades do bando ao administrador de Soalhães, Adriano José de Carvalho e Melo (situação confirmada a partir de 1853). O inevitável confronto entre os dois aconteceria na Lixa, em data indeterminada. Nesse duelo, José Pequeno perderia a vida, alegadamente por um golpe de tesoura com que Zé do Telhado lhe atravessou a garganta. Diz-se que, a seguir, a tesoura serviu para cortar a língua ao reles delator e bandido da Lixa. As autoridades, curiosamente, devem ter ficado satisfeitas com o desfecho do duelo, já que nunca viriam a acusar Zé do Telhado desta morte.

Após ter estado escondido, no Porto, numa residência que pertencia a D. Ana Vitória, que lhe deu guarida), encontrando-se já a bordo da barca “Oliveira”, com destino ao Brasil, Zé do Telhado foi detido a 5 de Abril de 1859 (31 de Março segundo alguns autores), por delação de dois membros do bando, o padre Torcato José Coelho Pereira de Magalhães, de Valteiro (Sousela, concelho de Lousada), e António Ribeiro Correia de Faria, morgado da Magantinha (S. Miguel de Lousada). Não hesitaram em trair o seu chefe, em troca de uma promessa de liberdade feita pelo administrador do concelho de Lousada, Albino Leite Rebelo da Gama.

Levado para a cadeia da Relação do Porto, Zé do Telhado travou conhecimento e fez amizade com Camilo Castelo Branco, que aí se encontrava em virtude do relacionamento amoroso que tinha com Ana Plácido, uma senhora casada.

Poucos apostariam que conseguisse livrar-se da pena capital, face às acusações constantes do processo (iniciado em 30 de Maio de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano) e ao seu polémico julgamento em Marco de Canaveses. Iniciado a 25 de Abril de 1861, esse julgamento ficaria marcado por evidentes irregularidades, que começaram logo no critério da constituição do júri (escolha a dedo dos jurados, em vez do habitual sorteio) e continuaram com a subtracção de algumas importantes testemunhas de defesa, situação que contrastava com a indecorosa manipulação de outras testemunhas, as quais, com meias verdades ou falsas afirmações, tinham apenas um único propósito: mandar o réu para a forca.

Mas não foi esse o destino de Zé do Telhado, mercê da brilhante defesa que teve, a cargo do advogado Marcelino de Matos (defesa gratuita, diga-se, feita a pedido de Camilo Castelo Branco). A sentença, do juiz António Pereira Ferraz, datada de 27 de Abril de 1861, condenou-o, porém, na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pela Relação do Porto, substituindo apenas a expressão "costa ocidental de África" por "Ultramar".

Partiu Zé do Telhado para Angola a bordo do brigue “Pedro Nunes”, dando entrada no Depósito de Degredados, em Luanda (Fortaleza de S. Miguel). Por essa altura havia revoltas entre os indígenas. O passado militar e os actos de bravura de que dera sobejas provas levaram o comandante da fortaleza a pedir-lhe que se alistasse nas suas tropas, o que veio a fazer, partindo para Ambriz, onde se destacou em várias campanhas militares. As febres, porém, fizeram com que regressasse a Luanda, onde o Governador-Geral lhe comunicou que iria propor ao rei a comutação da sua pena.

A mudança na chefia do governo da colónia (quando Zé do Telhado se encontrava em Benguela em nova missão militar) iria, porém, alterar novamente o rumo da sua vida. A missão foi revogada, sendo intimado a regressar ao Depósito de Degredados. É então que decide internar-se no mato, fixando-se em Xissa (hoje Mucari), terra natal de Bandy, um nativo de quem foi inseparável companheiro. Nessa terra, a cerca de uma centena de quilómetros de Malange, passou a dedicar-se ao comércio (borracha, cera e marfim), vivendo com uma nativa, de nome Conceição, de que viria a ter três filhos. Nunca esqueceu, porém, a mulher e os filhos que deixara na sua casa de Sobreira, em Caíde. O dinheiro que mandava é que poucas vezes terá chegado (se é que alguma vez chegou). Daí a miséria da sua família, de que provavelmente nunca terá tido conhecimento.

O indulto régio, de 1863, levou alguém não identificado (Ana Leontina? D. Ana Vitória?) a requerer que também lhe fosse aplicado. Um acórdão do Tribunal da Relação do Porto acabaria por dar provimento ao requerimento feito ao Procurador Régio em 2 de Agosto de 1865. Nesse acórdão, datado de 11 de Agosto, declarava-se “aplicável ao Réu José Teixeira da Silva, vulgo José do Telhado, (…) a disposição do art.º 5 do Decr[eto] de 28 de Abril de 1863, que lhe comuta a sobredita pena na de quinze anos de degredo para a África Ocidental a contar desde a data do sobred[ito] Decreto”.

Zé do Telhado poderia, pois, regressar à Pátria em finais de Abril de 1878. Mas isso nunca chegaria a acontecer porque faleceu três anos. Na notícia da sua morte, dada pelo Diário de Notícias na edição de 16 de Setembro de 1875, dizia-se: “José do Telhado, o célebre bandido que agora faleceu, tinha rasgos de virtude e generosidade no meio do crime…”.

A vida de Zé do Telhado deu origem a uma vasta literatura, popular e erudita (com destaque para o que sobre ele escreveu Camilo Castelo Branco nas Memórias do Cárcere), a três filmes (o de Rino Lupo, realizado em 1929, com interpretação de Carlos Azedo, e os de Armando de Miranda, de 1945 e de 1949 – o último intitulado A volta do Zé do Telhado – ambos com Virgílio Teixeira como protagonista) e a uma peça de teatro de Hélder Costa, levada à cena pela companhia A Barraca, em 1978. Os arranjos musicais desta peça eram de Zeca Afonso. Foram publicados, no ano seguinte, no álbum Fura, Fura. A peça tem sido representada, por várias companhias, um pouco por toda a parte, contribuindo decisivamente para que continue a perpetuar-se o mito do Robin Hood português.

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