Vila Meã, uma terra com história...

Portugal - Brasil, a memória pede meia sombra

06-06-2015 10:41

Portugal-Brasil, a memória pede meia sombra

(c) Agustina Bessa-Luís

Eu já escrevi um livro magnífico sobre o Brasil. Magnífica era a terra, e as pessoas eram magníficas. Por isso o livro foi um monumento que o engenho lavrou e o coração abriu aos mares comuns que temos. É estranho que, sendo o mar uma língua de água que nos uniu, tivesse hoje que marcar distância tão grande. Éramos dantes mais vizinhos; hoje somos parentes antigos de quem merecemos a herança mas não sei se a aproveitamos bem. Não sei o que aconteceu no mundo, que o orgulho nos tornou mais cegos. O orgulho é um novo fanatismo; é preciso ter cuidado com ele, que em tudo se intromete e tem nomes que parecem sair da manga da justiça e o que esconde não é lei mas só tormento. «A visão pede meia sombra», diz Machado de Assis. E a memória também.

Eu comecei muito cedo a conhecer o Brasil. Meu pai foi para o Rio aos doze anos, recomendado por um tio que tinha na Baía e para quem a fortuna foi amável. As enciclopédias dizem um pouco desse tio Joaquim Bessa de Carvalho, homem de negócios e de política casado com uma formosa menina filha dum médico e ainda meio criança quando foi para Portugal, onde morreu nova. Não morreu em cheiro de santidade, porque era turbulenta de génio e infeliz de saudades, suponho eu. Levou com ela uma mucama chamada Esperança que lhe sobreviveu muitos anos. Foi ela quem deixou na família a lenda do Brasil que só a sua gente conhece e respira. Faz parte do conceito da alma humana, conceito que se transgride logo que se quer moldar às coisas das letras.

A alma não tem o seu lugar no pensamento metafísico. É a própria realidade e só as figuras típicas que encarnam a atitude dum povo podem exprimir o que é a alma.

É muito diferente conhecer um país como itinerário, com a consulta académica dos seus livros, e conhecê-lo de maneira quotidiana, natural e familiar. Eu conheci o Brasil assim, antes de cruzar as suas portas com o passaporte na mão. Meu pai, que foi homem rico e proprietário de boa parte da Rua do Ouvidor, no Rio, sentava-se à mesa tarde, como fazem os boémios, trazendo com eles um sorriso enigmático. Era feito de lembranças de tertúlias e de pactos. Era um homem afável e perigoso. Sempre exerceu em mim uma fascinação reservada. Eu invejava-lhe a vida passada, invejava-lhe o Brasil que ele tinha nas veias como se fosse parente de sangue. Às vezes falava do Brasil urbano onde ele viveu vinte e cinco anos. E eu ouvia, com essa incredulidade dos que adivinham a experiência que nos foge pelos abismos do tempo. Era um cavalheiro com as mulheres, o que os europeus não são e creio que não foram nunca porque julgam as mulheres, e julgar é uma forma de desamor, de perfídia, se quiserem. A consciência moderna é sobretudo crítica, o que quer dizer que aborrece a fé. Está voltada para poderes supostamente mais elevados como a ciência. Mas o Brasil, que não teve Freud como tutela, escapa às contradições da agitação terrena e deixa que o divino coexista e trabalhe com os homens. A incapacidade de Freud para compreender a linguagem religiosa fez da cultura europeia um lugar árido, ainda que cultivado, como certos jardins franceses em que prevalece a geometria e onde não crescem flores.

O Brasil ensina-nos essa via suburbana que é a alma. É feita de coisas completamente reais, que nos acontecem todos os dias e que existem dentro e fora do código penal; dentro e fora do catecismo e da regra política. Sem o conhecimento dessa experiência livre e complexa dos nossos encontros com os outros, vizinhos e estranhos.

O mundo precisa de sábios e de criadores. Mas precisa igualmente de pessoas naturais, conversáveis, sem a mística da avaliação que é comum nos negócios, em que se cruzam interesses e sentimentos. Os sentimentos, que tão bem têm servido os poetas, perturbam muitas vezes a arte de se ser só. Esforçamo-nos por nos aparentarmos com alguém e acabamos por verificar que ninguém quer um parentesco connosco. Todas as ideologias e toda a moral religiosa ou cívica assentam na afinidade com os outros. Mas tal afinidade não existe. Tudo começou porque se imaginou sermos feitos à imagem e semelhança de Deus, o que é duma soberba pouco menos que ridícula. Deus é um condutor de energias e não um parente lá de casa. Sendo assim, temos que ver os outros, de toda a espécie, nação e cultura, como uma variedade de casos para resolver. Ninguém tem a chave para a felicidade, mas depende de nós sermos apropriados ao tempo em que vivemos. O que era bom ontem, pode ser hoje nefasto. Temos que inventar um modo transitório de ser infalível.

O amor entre os povos foi sempre acidentado e difícil. Quanto mais nos parecemos, mais resistimos a ser iguais. Criamos as nossas dificuldades de entendimento como quem cria pérolas em ostras, de maneira persistente e adequada. E, no entanto, a linguagem que usamos é imprópria dos nossos anseios. Falamos uns com os outros para ganhar tempo e não para encontrar soluções.

O Brasil é um precioso cofre de imaginações que nos garante o valor absoluto da pessoa. Em nenhum lugar do mundo como o Brasil eu senti que um homem pode ver a sua dúvida aliviada sem deixar de conhecer o desespero. No fundo, os homens não querem desesperar. Em toda a parte, as pessoas consentem o desespero, querem o desespero como companhia e dedicam-lhe o melhor das suas forças e dos seus pensamentos. Não se desespera sem querer. É preciso querer para verdadeiramente desesperar. Desesperar é uma forma de ganhar a liberdade. O valor eterno duma pessoa mede-se pela sua capacidade de desesperar. Mas há um valor maior do que o valor que atribuímos às coisas eternas, como a beleza, a inteligência, tudo isso que faz o espírito dos nossos desejos. É o valor de se escolher a si próprio, a sua identidade e não outra. No Brasil, eu tenho uma impressão de que não há ostentação duma personalidade, que não há o desespero com que se pretende ganhar o mundo com o prejuízo da própria alma.

O mal oferece-nos uma inesgotável proposta sob a forma estética. É a estética do mal que é preciso combater; sendo assim, combatemos o mal na sua mais profunda solução.

Deve parecer estranho que eu fale assim, em vez de falar dos nossos heróis nacionais nas Letras. Mas se eu me volto para os grandes poetas, vejo que o sentido da vida deles foi o de se entristecerem. O sentido da liberdade nos poetas é o de serem tristes, o de desesperar. No Brasil, o sentido da liberdade é o de querer a alegria e o de achar que a tristeza é contrária à natureza. Por isso eu ponho muito da minha confiança no povo do Brasil. Ao preferir a alegria, não é leviano nem insensato. Há sempre uma certa mágoa e uma forma de desespero também, na vontade de enganar a vida com a alegria, em vez de se fantasiar de herói em nome da tristeza. O brasileiro não é um homem atormentado. Sabe conviver com a tristeza sem fazer dela uma estética, um manto constelado que se guarda no fundo duma arca, como uma coisa que não se usa todos os dias. A tristeza e a alegria são parte integrante do seu dia-a-dia. Fazem parte da sua liberdade e da sua coragem. Temos que aprender com o Brasil.

Volto às recordações que são quimeras de estopa, onde tudo arde, o coração e a mente. Numa crónica de Machado de Assis (a quem ofereço incenso e tinta de escrever) ele refere, ao ler os jornais, «alguns atestados sobre as excelências do xarope Cambará”. Como Xerxes, que, contemplando um dia o seu imenso exército, chorou com a ideia de que, ao cabo dum século, toda aquela gente estaria morta, Machado de Assis diz: «Não são os homens que levam à melancolia, mas os remédios que os curam. Porque é que os remédios morrem?» Excelente filosofia, mas não menor realidade prática. Eu não assisti ao nascimento do xarope Cambará, como Machado de Assis. Mas despertou-me a memória de infância àquele nome, ouvido muitas vezes nas tertúlias da minha terra, Vila Meã, que foi cabeça de concelho de Riba-Tâmega, séculos atrás. Em Vila Meã havia um palácio com pedra de armas que, por ocasião de luto na família, se cobria com panos pretos. Pois ao visconde que levantou a casa chamou o povo visconde de Cambará, por ser ele o autor do xarope curativo de fraquezas de pulmões e tédios de alma. Machado de Assis não sabia isto. Sabia quem inventou o rapé de alfazema e as pílulas universais americanas. As pílulas catárticas do farmacêutico Carvalho Júnior curavam as inflamações dos olhos e dissipavam a melancolia. Sendo que as lágrimas se estancavam com pílulas que não há mais; tudo remédios que descansam no Senhor, como os velhos hebreus, no dizer feliz e belo de Machado de Assis. O Cambará, quem o inventou foi um português de Vila Meã, como eu. Que me resta a mim para inventar? Que pós milagrosos, que água salutar? Alguma coisa tenho que descobrir. Entretanto, vou escrevendo livros, na esperança de serem como o bálsamo homogéneo ou o elixir anti-fleumático; de serem imortais como os soldados de Xerxes não foram.

Vós tendes Machado de Assis e não vos arrependeis de ter nascido depois dele? Eu não só me arrependo como mato os dias que dele me separam e admiro-me de tanta graça e talento nas Letras. Era ele quem dizia que um certo rapaz valsava como quem se despede da vida. E eu faço a minha vénia como quem se despede de Machado de Assis e de todos vós. Há uma carta de Machado de Assis a um amigo, datada do Rio, em Junho de 1884, em que ele diz assim: «Tinha planeado uma apreciação longa e minuciosa das instituições literárias e outras dos portugueses no Brasil; faltou-me o tempo e o descanso de espírito». Mas mesmo assim é eloquente. Mesmo sem tempo é generoso. E sem descanso, é fantástico de gentileza e bondade, que é a essência da natureza diplomática. É isto o que se aprende no Brasil.

 Meus Senhores, muito obrigada.

1999

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